sexta-feira, 27 de julho de 2012

Asas ao sonho





Eu vi um homem. Feio. Velho. Sujo. Barba mal feita e dentes
amarelados. Aliás, imagino que estavam amarelados, porque jamais vi um
sorriso seu. O máximo que via era o começo de seu peito peludo e
suado. Suado não sei porquê. Desmazelado daquele jeito nem emprego
havia de ter, e andar no sol. Sem chance. Há quinze dias só chove por
aqui. Um milagre que ele não estivesse ensopado, afinal, não sei se
tem casa e deve viver vagando por aí. Aqui ninguém nunca ouviu falar
dele, nunca viram ele pedir uma bebida no boteco da esquina, nem
remédio para dor de cabeça na farmácia do Seu Antônio. Acho que ele está
perdido. E de tão feio, dá até medo de se aproximar.
Chinelas velhas. Jeans desgastado. Camisa preta, que mais parece cinza
e uma caneta no bolso. Não sei o motivo de tanto mistério, nem de
tanta sujeira. Limpo, ele deve ter a metade da idade de quando está
sujo. Será que tem esposa, filhos, pais? Ah, acho que não! Perdido desse jeito,
não deve ter ninguém para contar. Sei não, mas ainda
aposto que dali não vem boa coisa.

Depois de alguns dias o homem desapareceu. Sumiu. Do tanto que era
estranho e já rondava por aqui há algum tempo, até falta ele fez. E
descobrindo em mim uma certa "saudade", daquele homem completamente
misterioso, e sujo, foi que me dei conta de que ele não tinha muito
mesmo o que dizer, nem o que oferecer, mas era completamente capaz de
despertar sentimentos no mínimo curiosos, como aquele vazio que eu
sentia. Não sei de onde veio nem pra onde foi. Mas certo dia encontrei
perto de casa uma caneta, parecida com uma que já tinha visto, mas
que não era minha. Tomei-a do chão sujo meio desconfiada. Sem dono não
seria um pecado levá-la para casa. Depois de uns sete dias, que parece
maior que uma semana, lembrei-me do homem. E da caneta.

Daquele momento em diante, aquele pequeno objeto era o único rastro
deixado por ele.
Peguei um papel, fui testar a caneta, não tinha uma gota de tinta
sequer. Fiquei me perguntando o porquê dele carregar no bolso uma
caneta velha. Desgastada. Mas pensando um pouco mais me dei conta de
que talvez ele a tenha jogado fora, e por isso estava no chão, onde a
encontrei. Cheguei à conclusão de que ele era feio, sujo e nada a ver
com nada, mas era eu quem estava catando canetas usadas do chão.

Moral da história, pensei comigo, a caneta estava velha e sem tinta
porque ele já havia usado demais, escrito demais. E
eu, perdi meu tempo julgando-o, tentando entender, me pré-ocupando e
catando restos, enquanto aquele homem, preparava-me uma lição muito
digna: "julgamento não muda as pessoas, mas passar a enxergar a si muda toda a história. O importante é fazer nossa parte."

Desde então, não parei mais de escrever. Hoje coleciono canetas sem
tinta. Passei cada gota do pigmento para o papel, que sugou sem dó. 
Um pouco mais tarde tudo ficou claro, o mistério se desfez. Era simples. Ele era um anjo.

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